VocĂȘ sempre me disse que sua maior mĂĄgoa era eu nunca ter escrito um texto sobre vocĂȘ. Nem que fosse te xingando, te expondo. Qualquer coisa.
VocĂȘ sempre foi o Ășnico homem que me amou. E eu nunca te escrevi nem uma frase num papelzinho amassado.
VocĂȘ sempre foi o Ășnico amigo que entendeu essa minha vontade de abraçar o mundo quando chega a madrugada. E o Ășnico que sempre entendeu tambĂ©m, depois, eu dormir meio chorando porque Ă© impossĂvel abraçar sequer alguĂ©m, o que dirĂĄ o mundo.
Outro dia eu encontrei um diĂĄrio meu, de 99, e lĂĄ estava escrito "Hoje eu larguei meu namorado sentado e dancei com ele no baile de formatura". Ele, no caso, Ă© vocĂȘ. Dei risada e lembrei que em todos esses anos, mesmo eu nunca tendo escrito nenhum texto para vocĂȘ, eu por diversas vezes larguei vĂĄrios namorados meus, sentados, e dancei com vocĂȘ. Porque vocĂȘ Ă© meu melhor companheiro de dança, mesmo sendo tĂmido e desajeitado.
Depois encontrei uma foto em que vocĂȘ estĂĄ com um daqueles Ăłculos escuros espelhados de maconheiro. E eu de calça colorida daquelas "bailarina". E nessa Ă©poca vocĂȘ nĂŁo gostava de mim porque eu era a bobinha da classe. Mas eu gostava de vocĂȘ porque vocĂȘ tinha pinta e eu achava isso super sexy. E eu me achei ridĂcula na foto, mas senti uma coisa linda por dentro do peito.
AĂ lembrei que alguns anos depois, quando eu jĂĄ nĂŁo era mais a bobinha da classe, e sim, uma estagiĂĄria metida a esperta que sĂł namorava figurĂ”es (uns babacas na verdade), vocĂȘ viu algum charme nisso e me roubou um beijo. Fingindo que ia desmaiar. Foi ridĂculo. Mas foi menos ridĂculo do que aquela vez, ainda na faculdade, que eu invadi seu carro e te agarrei a força. VocĂȘ saiu cantando pneu e ficou quase dois anos sem falar comigo.
Eu nĂŁo sei porque exatamente vocĂȘ nĂŁo mereceu um texto meu, quando me deu meu primeiro cd do VinĂcius de Morais. Ou quando me deu aquele com historinhas de crianças para eu dormir feliz. Ou mesmo quando, jĂĄ de saco cheio de eu ficar com vocĂȘ e com mais metade da cidade, vocĂȘ me deu aquele cartĂŁo postal da AmazĂŽnia com um tigre enrabando uma onça.
TambĂ©m nĂŁo sei porque eu nĂŁo escrevi um texto quando vocĂȘ apareceu naquela festa brega, me viu dançando no canto da mesa, e me disse a frase mais linda que eu jĂĄ ouvi na minha vida "eu sei que vocĂȘ nĂŁo gosta de mim, mas deixa eu te olhar mesmo assim".
Talvez eu devesse ter escrito um texto para vocĂȘ, quando eu te pedi a Ășnica coisa que nĂŁo se pede a alguĂ©m que ama a gente "me faz companhia enquanto meu namorado estĂĄ viajando?". E vocĂȘ fez. E vocĂȘ me olhava de canto de olho, se perguntando porque raios fazia isso com vocĂȘ mesmo.
Talvez porque mesmo sabendo que eu nĂŁo amava vocĂȘ, vocĂȘ continuava querendo apenas me olhar. E eu me nutria disso. Me aproveitava. Sugava seu amor para sobreviver um pouco em meio a falta de amor que eu recebia de todas as outras pessoas que diziam estar comigo.
Depois vocĂȘ começou a namorar uma menina e deixou, finalmente, de gostar de mim. E eu podia ter escrito um texto para vocĂȘ. Claro que eu senti ciĂșmes e senti uma falta absurda de vocĂȘ. Mas ainda assim, eu deixei passar em branco. Nenhuma linha sequer sobre isso.
Depois eu tambĂ©m podia ter escrito sobre aquele dia que vocĂȘ me xingou atĂ© desopilar todos os cantos do seu fĂgado. Eu fiquei numa tristeza sem fim. Depois pensei que a gente sĂł odeia quem a gente ama. E fiquei feliz. Pode me xingar quanto vocĂȘ quiser desde que isso signifique que vocĂȘ ainda gosta um pouquinho de mim.
Minhas piadas, meu jeito de falar, atĂ© meu jeito de dançar ou de andar. Tudo Ă© vocĂȘ. Minha personalidade Ă© vocĂȘ. Quando eu berro Strokes no carro ou quando eu faço uma amiga feliz com alguma ironia barata. Tudo Ă© vocĂȘ.
Quando eu coloco um brinco pequeno ao invĂ©s de um grande. Ou quando eu fico em casa feliz com as minhas coisinhas. Tudo Ă© vocĂȘ. Eu sou mais vocĂȘ do que fui qualquer homem que passou pela minha vida. E eu sempre amei infinitamente mais a sua companhia do que qualquer companhia do mundo, mesmo eu nunca tendo demonstrado isso. E, ainda assim, nunca, nunquinha, eu escrevi sequer uma palavra sobre vocĂȘ.
AtĂ© hoje. AtĂ© essa manhĂŁ. Em que vocĂȘ, pela primeira vez, foi embora sem sentir nenhuma pena nisso. Foi a primeira vez, em todos esse 'tempo', que vocĂȘ simplesmente foi embora. Como se eu fosse sĂł mais uma coisa da sua vida cheia de coisas que nĂŁo sĂŁo ela. E que vocĂȘ usa para nĂŁo sentir dor ou saudade. Foi a primeira vez que vocĂȘ deixou eu te olhar, mesmo vocĂȘ nĂŁo gostando de mim.
E foi por isso, porque vocĂȘ deixou de ser o menino que me amava e passou a ser sĂł mais um que me usa, que vocĂȘ, assim como todos os outros, mereceu um texto meu.