Eu apertei o play e coloquei a nossa mĂșsica pra tocar. NĂŁo me pergunte porquĂȘ, como, quando... Eu sĂł... Apertei o play. Com apenas um toque a melodia suave voltou a soar e o meu coração se inflou de tudo o que eu jurei jamais sentir. Meu peito agora dĂłi. Meus braços, minha nuca, meus dedos... Tudo dĂłi. E o tudo jĂĄ doeu antes - incontĂĄveis vezes, por sinal - mas nĂŁo como agora. A dor nĂŁo Ă© dor, entende? Porque saudade Ă© dor, angustia Ă© dor, nostalgia Ă© dor... Isso nĂŁo Ă© dor. Isso se chama as ruĂnas quebradas de um castelo onde jĂĄ habitou amor. Tudo bem, eu sei que jĂĄ me mudei pra outro reino, outro castelo, outros costumes, outros pseudo-prĂncipes e tudo mais. Eu sei que acabei com todos os monstros horripilantes que cercavam o meu quase-conto-de-fadas. Eu sei que jĂĄ superei, me reergui, me restabeleci e me reafirmei. O problema Ă© que destruir um castelo nĂŁo significa necessariamente que ele vĂĄ sumir do mapa. Eu posso dar a volta no planeta, meu caro, nĂŁo importa: ainda saberei decorado o caminho de volta pra casa. NĂŁo interessa quantas vezes eu mate os monstros ou ria dos estragos, eles sempre voltam. Uma hora ou outra, entre o intervalo de uma risada e um choro perdido... O castelo em ruĂnas aparece pra mim, escondido, no meio dos sonhos ou dos pesadelos cruĂ©is, no centro da realidade ou no centro dos papĂ©is. Eu, agora, estou pisando nas ruĂnas - tĂŁo frias quanto quem anda sobre elas. E o que dĂłi nĂŁo Ă© ver os meu esforços ali, feito lixo, jogados sem nenhum abrigo, sem nenhum teto, sem nenhum zelo. O que dĂłi, no fundo, meu caro, Ă© nĂŁo saber mais como reciclar o lixo que eu mesma formei, tornei e fiz. Sabe os monstros horripilantes, dragĂ”es que cospem fogo e bruxas malvadas? Estes nĂŁo existem mais. SĂł... eu. O monstro Ă© a princesa perdida no reino que se perdeu. O monstro Ă© aquela que nĂŁo sabe mais amar porque amar qualquer coisa dĂłi pra cacete e ninguĂ©m entende. O monstro Ă© aquela que cruza os braços, faz cara feia e mostra o dedo do meio pro primeiro palhaço que disser que a vida pode sim ser magnĂfica. MagnĂfica o escambal! Eu digo. Ă tudo uma grande porcaria! Eu grito. NĂŁo adianta, nada adianta... Com isso eu jĂĄ me acostumei. O que eu nĂŁo aceito nem nunca vou aceitar em hipĂłtese alguma sĂŁo essas rasteiras repentinas que o mundo resolve me dar, assim, sem nenhum motivo aparente. Me diz onde foi que eu errei, vai. Tirando a parte em que eu luto pra sobreviver todos os dias, me diz, por favor, que mal hĂĄ em querer ser feliz?
Aprendi a ignorar muita coisa e isso me fez bem. Muita gente pequena com mente pequena e pensamentos pequenos quiseram fazer com que o meu grande se tonasse minĂșsculo. Muita gente sem carĂĄter quis transformar o meu em algo descartĂĄvel. Muita gente com intençÔes ruins quis me fazer um ser humano podre e sujo, igualzinho a eles. Eu segui o seu conselho de tentar nunca esquecer o quĂŁo boa consigo ser, se me permitir. Talvez vocĂȘ fique orgulhoso disso, sei lĂĄ. NĂŁo sei mais se posso causar orgulho em alguĂ©m. O problema Ă© que no meio desse ninho de gato de ignorar pra lĂĄ e ignorar pra cĂĄ, assim como eu ignorei as coisas ruins, tambĂ©m ignorei as coisas boas. Muita gente bateu na minha porta e eu a tranquei. Muita gente me deu um sorriso e eu reneguei. Muita gente sĂł precisava de um abraço e eu apenas segui reto, firme, com medo de me desequilibrar e colocar tudo a perder. Eu continuei sendo irĂŽnica e sarcĂĄstica como sempre fui, mas dessa vez como uma espĂ©cie de auto defesa inatingĂvel. Tudo o que eu queria, vez ou outra, era respirar fundo e recomeçar tudo de novo. E de novo. E de novo. E de novo atĂ© me cansar de recomeçar e apenas fluir, como uma pluma leve ou uma pena no meio do vento suave do litoral. Eu queria ter um nĂșmero secreto na minha agenda telefĂŽnica que nĂŁo fosse o seu pra ligar e chamar pra ver o nascer do sol em cima das dunas. Eu queria ter um endereço secreto que nĂŁo fosse o seu pra correr e me esconder por nada, apenas por me esconder. Eu queria ter uma intimidade gigantesca com alguĂ©m que nĂŁo fosse vocĂȘ pra dizer tudo o que eu quero, o que nĂŁo quero, o que penso e o que nĂŁo penso. Ă isso, sabe? Tudo o que eu preciso Ă© de alguĂ©m igualzinho a vocĂȘ, mas sem ser vocĂȘ.
NĂŁo Ă© drama. JĂĄ foi, confesso, muitas vezes apenas drama de criança birrenta querendo atenção, mas hoje nĂŁo. Eu nĂŁo quero atenção nem holofotes ou outdoor com o meu nome - por incrĂvel que pareça. NĂŁo quero melação, frescurinha, mimos ou coisas do gĂȘnero. Seria masoquista demais ou ridĂculo ao quadrado se eu dissesse que me contento em observar as ruĂnas do castelo? Porque, de verdade, sentar nos destroços e respirar fundo nunca foi uma opção tĂŁo tentadora. Acho que somente assim, digo, voltando ao começo e tendo a absoluta certeza de que Ă© o final, vou poder me deslocar para o presente e pensar, de uma vez por todas, no futuro. Ă observando como se perdeu a guerra que a gente aprende a enfrentar novas batalhas sem cometer os mesmos erros, nĂŁo? Acho que sim. No fim das contas, tudo dĂĄ empate: a falta de amor e o amor em abundancia brigam constantemente por um espaço que nunca cabe os dois. NĂŁo precisa voltar correndo, me ligar desesperado, mandar carta, e-mail ou qualquer sinal de vida. Foi sĂł uma recaĂda de... Lembranças? Que seja. Foi sĂł um revirar de olhos como quem diz "puta merda, se eu pudesse voltar no tempo…", sabe? Mas, por bem ou por mal, nĂŁo posso. Nem quero. Pela primeira vez na vida tenho a certeza de onde deveria estar, quero chegar e pretendo ir. Meus planos estĂŁo cada vez mais seguros e meus sonhos cada dia mais alcançåveis. O problema Ă© que o castelo, querendo ou nĂŁo, continua ali. E eu sempre volto a apertar o play.